domingo, agosto 01, 2010

A Masseira Sombria


A minha mãe tinha nove irmãos e uma mãe que os espancava a todos. Tinha um pai, desertor da guerra de 14-18 - poucos portugueses foram para essa guerra e muitos menos escaparam com vida, para além dos desertores, que escaparam todos, claro... este pai defendia os filhos.

A mãe da minha mãe tinha uma masseira. Era uma peça de mobiliário destinada a amassar a farinha para fazer pão, e que também servia de mesa. A parte de amassar era destacável e tinha vagamente a forma de um barco. Ou talvez de um pequeno caixão. Todos os caixões são navios que nos transportam...

Num belo e quente dia de Verão, a minha mãe e uns irmãos mais novos levaram a parte de cima da masseira para um pequeno riozinho, o que se chama um ribeiro. A masseira flutuava bem e eles navegaram felizes toda a tarde, rio abaixo. Este ribeirinho ia dar ao Rio Douro, mas não foi dar. Só havia um remo, que era a pá do forno e, quanto ao leme, não havia.

Quando chegaram a casa (nem chegaram por si, foi preciso ir buscá-los) apanharam todos uma grande surra. Mas a minha mãe contava isto como uma coisa muito gira que tinha feito... muito boa...

De todas as vezes que embarquei, às vezes em navios de luxo, senti que tinha embarcado clandestinamente na masseira da minha avó, com a minha mãe e os meus tios, no riozinho de prata que ia dar ao rio Douro, mas não foi.

E talvez todos os navios tenham começado por ser assim, masseiras sombrias e clandestinas, deslocadas da terra para o mar, possuídas pela vibração das marés e pelo sonho de navegar: assim como todas as descobertas marítimas começaram por ser naufrágios.

A masseira continua parada no mesmo sítio, sombria e lúgubre, como que fundeada, talvez ainda ansiando pelo mar.

Hoje, dia um de Agosto, quero homenagear a minha mãe no dia em que ela morreu. Há muito tempo, tinha eu 18 anos.

E gosto de a lembrar assim: não morta, mas viva, alegre, feliz e criança: a desafiar o "poder" e a sentir-se encantada por o ter feito. Recordando esses momentos com prazer durante toda a vida.

Infância: tempo de navegar em algo de imaginário mas quase real. Tempo de partir sem levar nada, por ainda não se ter nada. E sem receio de naufragar e perder tudo. Sem receio de que vá tudo "por água abaixo". Porque ainda não temos nada.

P.S.: Programei a mensagem para ser publicada hoje, 1 de Agosto, às oito da manhã.
Graciete Nobre
A foto extraída deste blogue CLICAR AQUI: a masseira parece ser uma miniatura, assim como a pá, pelo menos imagino-os e recordo-os bem maiores e sem pinturas. Era também na parte de cima que se guardava o pão.

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