No dia seguinte, estava eu assim tão bem dormida e satisfeita, quando o guia nos deixou numa rua pequena e estreita, de onde se via a esplendorosa e inacreditável praça central de mercado, que em árabe se diz "souk". Para além das coisas assombrosas que já referi, tem muitas tendinhas de artesanato e outros artefactos, que pelo menos são giras de ver, tudo com aqueles guarda-sóis de pano, ou mesmo só com um pano no chão.
Eu disse que ia lá, claro, e perguntei aos outros se queriam vir. Um homenzarrão, que conhecia bem uma minha tia, o que já tínhamos descoberto antes, disse logo que não ia, porque tinha medo de ser raptado.
De facto, dizia-se que uma mulher corria o risco de ser raptada em Marrocos e vendida para os haréns, daí o tal preço de uns quantos camelos que eles às vezes propunham a uma mulher para, alegadamente, a comprarem. Também tinha ouvido dizer que alguns homens não queriam ir a Marrocos com medo de perder a esposa, o que me pareceu pouco convincente. Mas aquele disse mesmo que receava que o raptassem a ele. Perguntei-lhe qual era a lógica da situação. Alto e forte como era, muito mais corpulento do que qualquer marroquino... e ainda para mais, nunca se ouviu dizer que raptassem homens...
- Apanham-me aí numa dessas ruelas estreitas, dão-me uma paulada na cabeça, eu caio logo desmaiado e eles arrastam-me por lá fora.
Este subtil argumento da paulada na cabeça convenceu todo o mundo, pelo que eu respondi que, nesse caso, ia sozinha e comecei a afastar-me.
Disse-me logo um senhor muito velhinho, magrinho e minúsculo, com uma voz fininha e vindo atrás de mim:
- Não pense que a vou deixar ir sozinha!
Já irritada, perguntei, mirando-o de alto a baixo:
- Como é que me vai impedir?
- Vou consigo!
- Então e a sua esposa?
- Ela também quer ir!
- A senhora quer ir?
- Claro!
E lá fomos, eu protegida por dois velhinhos tão frágeis que me sentia responsável por eles, pensando que devia protegê-los, sobretudo quando pegavam despreocupadamente na carteira para pagar qualquer coisa, como se estivéssemos aqui. Enquanto fui assim magra, nunca tive a noção de que não tinha força física, e a verdade é que nunca precisei dela.
Até hoje vi muitos exemplos de medo e de cobardia de homens, incluindo homenzarrões, mas aquela foi a primeira vez que ouvi um desses confessar um receio completamente infundado, sem pudor.
Foi dessa vez que vi um homem feiíssimo, como só vi em sítios destes e no Brasil (os chamados malandros), que tinha entre os olhos um escorpião, tão feio como ele, parecendo que o ia picar e cegar e matar...
Como sou muito sensível à beleza, aquilo horrorizou-me tanto como as serpentes encantadas me tinham encantado. Quando, no dia seguinte, as mesmas pessoas da véspera me perguntaram se dormi bem, respondi:
- Não preguei olho. Passei a noite a levantar os lençóis e o colchão à procura de escorpiões debaixo da cama.
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