O guia, que era de Ceuta, tinha-nos avisado, logo no início, para termos cuidado com o dinheiro, pois podiam roubá-lo. Aconselhou a metê-lo nas meias, ou, melhor ainda, a entregar-lho, que ele levava-o numa pasta.
Como eu era a única pessoa que tinha comprado na agência hotéis de três estrelas, pela lógica só possível em certos países, juntaram-me com a única família que tinha comprado só hotéis de cinco estrelas. Era uma família luso-francesa, mulher portuguesa que tinha sido tradutora e agora era rica, marido francês rico e duas meninas, a viverem nas Antilhas, todos muito simpáticos, com quem fiz grande parte da viagem.
Por razões "lógicas", em vez de viajarmos no autopullman de luxo e ar condicionado em que iam todos os outros (tendo todos comprado hotéis de quatro estrelas), viajávamos numa forguneta com ventilação no tecto.
O ventilador do tecto estourou quando, no deserto, houve uma tempestade de areia, ou o que assim nos pareceu. A areia vermelha meteu-se no ventilador e, a partir daí, fomos a torrar todo o caminho, sufocados de areia vermelha no nariz e na garganta, até que eu me fartei e exigi ir no autopullman.
Em vez de guia, tínhamos um motorista da furgoneta, que nos explicava algumas coisas à sua maneira, falando espanhol, que me tratava por tu, por eu ir sozinha e que pretendia mandar em mim, pelo mesmo motivo.
Quando fiz ver à senhora que era inteiramente descabido eles viajarem numa carrinha sem ventilação, tendo pago muito mais dinheiro do que todos os que iam no autocarro de luxo, incluindo eu, que entretanto já me tinha mudado para lá, a senhora foi-se abaixo. Contou-me que o marido era filho de um homem muito rico, com uma personalidade fortíssima, que já teria feito cair o Carmo e a Trindade numa situação daquelas, mas que, por isso mesmo, estava sempre à espera que o pai decidisse tudo por ele, era incapaz de tomar uma atitude... enfim, era um bananas.
Quando chegámos a Meknes, fomos passear por umas praças largas, ao contrário das que tínhamos visto antes, pois esta era a cidade mais incaracterística de todas as que víramos até ali. Andavam mulheres de cara tapada com o véu roupas largas, que as faziam todas iguais, bem como crianças, a vender umas fitinhas para amarrar na cabeça. Serviam as fitinhas para enfeitar e também para impedir o suor de escorrer, o que era bom para quem ia na carrinha...
Vendiam outras coisitas, mas tudo muito barato e ainda deixavam mais barato se nós discutíssemos o preço. O lucro só podia ser ínfimo, a mão de obra grátis, o que enfatizava claramente a miséria em que viviam. Discutir o preço, naquelas circunstâncias, parecia-me um crime.
De dentro do autocarro, vimos um polícia tirar as fitinhas a um menino muito pequeno. Com uma mão agarrou-lhe nas duas e com a outra espancou-o com quanta força tinha. Não exagero nada ao dizer isto assim. Queríamos tirar fotografias, mas o guia avisou-nos de que iríamos presos se o fizéssemos.
Pouco depois saímos e andávamos por ali, cada um com uma garrafa de um litro e meio de água, que nos tinha sido recomendada, dado o enorme calor e a insuportável sede que gerava.
A meio do deserto tínhamos visto um homem com camelos, parámos e ele pediu água, que toda a gente lhe deu, simpáticamente.
Nesta terra havia um enorme tanque, que nos foi apresentado com sendo um grande e importante trabalho de engenharia, cheio de água imunda. Diziam eles, como ditado popular, que onde há água há beleza. A ideia é que surgem plantas por toda a parte e que as mulheres ficam bonitas quando estão lavadas.
A certa altura, uma criança pequena, um rapazinho, roubou a garrafa de água de uma respeitável senhora do nosso grupo. Pressuroso, o guia correu atrás dele, apanhou-o, tirou a água, usou o método de lhe agarrar com uma mão as duas mãos e de lhe bater com a outra. Fui também a correr ter com eles, libertei o miúdo, dei-lhe a minha garrafa de água e injuriei o guia em francês, espanhol inglês e português. É difícil discutir noutra língua, mas é mais fácil com os intérpretes.
Escusado será dizer que, antes deste meu gesto, estavam todos a aplaudir o guia, que assim nos livrava da tremenda ladroagem: a verdade é que não vimos outra ladroagem para além desta.
O pessoal já não gostava muito de mim, mas eu ainda gostava menos deles...
Entretanto, a criança fugiu espantada, agarrada à garrafa que tanto lhe custou a ganhar.
É claro que muitos deram o seu dinheiro a guardar a este guardião da ordem e do progresso. Eis senão quando, uma bela manhã (bela, porque eu trazia o meu dinheiro na carteira e a carteira ao ombro, como sempre), apareceu o sujeito com um ar transtornado e contou a seguinte história:
Estava no hotel, numa suite, quando lhe aparece um rapaz, dizendo ser de Ceuta e da sua família. Embora não o conhecesse, as famílias árabes são muito grandes e ele referiu vários parentes comuns. Estiveram, portanto, a beber.
Embora o álcool seja rigorosamente proibido e não seja vendido nos estabelecimentos marroquinos nem outros, dado não haver uma separação clara, nestes países, entre a lei civil e as leis religiosas, nos hotéis de luxo existe toda a espécie de bebidas caríssimas, destinadas a turistas, mas que eu bebi acompanhada por uns rapazes marroquinos, que tinham vivido em França e que conheci lá. Explicaram-me muitas coisas sobre o país, difíceis de entender para um não-árabe, incluindo a ideia, agora clara, de que eles desejam ter a sua cultura própria, que mal se distingue de tradições atrasadas e opressivas, nomeadamente para a mulher. Mas eles gostavam do rei e acreditavam que eles os conduziria para uma evolução na continuidade, na preservação da identidade árabe. Agora têm um novo rei e também gostam muito dele.
Continuando, enquanto eu confraternizava com os rapazes e o guia com o seu pseudo-parente, bebendo uns drinks ocidentais, a certa altura ele foi à casa-de-banho. Quando voltou, o "primo" tinha-lhe roubado a pasta, com todo o dinheiro para pagar os hotéis e a gasolina e mais o dinheiro que alguns viajantes lhe tinham confiado.
Toda a gente morreu de pena do herói, no fim deram-lhe uma gorjeta monumental, mas eu fiquei com a opinião que tinha desde o princípio.
Era do guia que precisávamos de nos proteger, mais do que de qualquer outra coisa. Era ele que nos incutia um medo constante, de modo a poder levar-nos às lojas caras onde tinha comissão. Se não acreditávamos nas balelas que nos contava a esse respeito, punha um ar de gozo e fingia que
estava a brincar. Mas não estava e quase todos acreditavam nele.
Tenho observado esta ingenuidade e esta dependência dos guias, nas viagens que tenho feito, mas jurei para nunca mais viajar em excursão, a não ser em pequenos percursos de um dia. Até agora, cumpri sempre o juramento.
(Talvez continue).
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